sábado, 21 de outubro de 2017

Carta à memória


Caríssima memória,

Escrevo para registrar meu apreço por você. Acredito que já tenha ciência disso, mas não custa frisar. Desde cedo, cresce em mim o medo de, um dia, perdê-la. Deixar de ser quem sou. Pior que morrer é viver sem lembrar.

Encontrei, noutro dia, entre guardados inúteis de fundo de gaveta, aquela cassete Basf, que uma vez me trouxe lembranças de um tempo que não vivi.

Era um encontro de família. Meu pai ao piano. Sua voz se misturava às de minhas tias, tios e... à minha. Uma cena usual, não fosse a plena certeza que eu tinha de jamais ter cantado aquela canção na vida. Marchinha de carnaval, falava de boias-frias bebendo para esquecer, seus sonhos de bife a cavalo com batata frita e, de sobremesa, goiabada cascão. Com muito queijo. Como eu podia ter apagado tudo aquilo?

A música era O Rancho da Goiabada, do João Bosco e do Aldir Blanc, que logo se emendou em João e Maria, do Chico. Minha voz cantava sem mim. Seria possível? Foi quando, na gravação, ouvi um choro de bebê, seguido da voz de meu pai: – Espera um pouquinho, Luciana. – Vrrrvvrrdfgtgghhhhhvrrr. Rebobinei a fita. – Espera um pouquinho, Luciana. – Ouvi tudo de novo. E de novo. Chorei e ri muito, agarrando-me a você e agradecendo por permanecer comigo. A voz que pensei ser a minha era de minha mãe, com a minha idade atual. Um susto. Peça pregada por uma lembrança alheia.

Devia haver maneira de costurá-la nas ideias. Leonard, no filme Amnésia, de Christopher Nolan, tatuava o próprio corpo com pistas sobre si mesmo. Gosto da estratégia. A tatuagem gruda na gente e não sai mais. Fiz minha primeira tatuagem com quase 40 anos.

Funes, o memorioso, de Borges, à primeira vista me pareceu o retrato da perfeição. Até o mesmo conto desconstruir essa impressão, provando por A+B as limitações de ser uma enciclopédia ambulante.

Uma pessoa enlouquece por total esquecimento ou por não saber articular memórias demais. Fico com a segunda opção, caso possa escolher. Simpatizo com o ditado “o que abunda não atrapalha” e me desce um tanto quadrado o tal “antes só do que mal acompanhada”.

Aquela cassete Basf não toca mais. O toca-fita tornou-se artigo raro. Assim como ouvir meu pai ao piano. Nem tudo se resolve com tatuagem. Até quando guardarei comigo a gargalhada contagiante do meu irmão caçula? E o cheiro de aconchego da minha avó?

Estou me estendendo demais. Queria apenas dizer que te amo e que não sei viver sem você. Às vezes te sinto distante, volátil, fulgaz. Isso me paralisa. Não me deixe só.

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