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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Memórias

Minha história de leitura, pelo que me lembro, começa com os livros e gibis por assinatura. Graças a meus pais, virei fã das coleções e, sobretudo, das turmas. A do Marcelo, Marmelo, Martelo (Ruth Rocha),...

...a do Menino Maluquinho (Ziraldo), ...

...a da Laurinha (Jane Carruth)...

e a dos personagens de Walt Disney, todas do Círculo do Livro, ... 

...a da Mônica (Mauricio de Sousa), ...

a da Luluzinha (Marjorie Henderson Buell), ... 

 ...a do Lambe-lambe (Daniel Azulay)...

Não é à toa que faço parte de diversas turmas – algumas bem antigas – e adoro cada uma delas. A da infância/adolescência, a do CEFET, a da faculdade, as do trabalho, a da literatura. Meu irmão costumava dizer que eu gosto mais dos amigos do que da família. Ciúme de irmão, claro. Mas é verdade que, apesar de muito tímida, quando monto uma patota eu me agarro nela e não largo mais!

Na infância eu lia, mas também ouvia muitas histórias. Tínhamos alguns discos coloridos de vinil, da “Coleção Disquinho”, com diversas narrativas musicadas, na maior parte compostas e adaptadas pelo João de Barro, o Braguinha, que quase furaram de tanto tocar na vitrola. Dessas, as que mais me lembro são “A festa no céu” e a “História da Baratinha”. Eu ficava arrasada com o triste fim dos personagens, mas não parava de repetir. 


Tinha uma que eu só ouvia através do meu pai, que contava tocando piano: “Zé Carrancudo”. Ele fazia as entonações, tocava as músicas na hora certinha, criava o clima todo. Nunca cansei de ouvir. Até hoje peço para ele contar/tocar, com a desculpa de que é para o Gui ouvir. Mas é a filhota aqui quem mais vibra. Essa narrativa, ao contrário das duas citadas da “Coleção Disquinho”, tem final feliz, apesar de ser tensa até o desfecho. Tentei encontrá-la em áudio por muito tempo, mas só achei em 2020, no Youtube. Ao ouvi-la no original, pela primeira vez, aos 41 anos, eu me emocionei. Meu pai contando é muito melhor.

As histórias lidas e ouvidas na infância me fizeram ser amante da música e sonhar em ser ilustradora. Toco piano, mas a timidez não me permite fazer o que meu pai faz. Para contadora de histórias, infelizmente não sirvo. Meu objetivo, quando menina, era um dia trabalhar com o Mauricio de Sousa ou nos Estúdios Disney. Cheguei perto! Escolhi estudar Design na ESDI e meu primeiro estágio profissional foi no estúdio de cinema de animação Animagem, com o grande Rui de Oliveira! Uma experiência incrível que guardo no coração. 




Hoje escrevo, ilustro e diagramo. Produzo meus livros do início ao fim. Não tem como dizer que não fui influenciada pelos livros da infância. Eu me identificava tanto com as personagens quanto com aqueles que as criavam. Queria saber quem eram, sua biografia... Colecionava narrativas.

Na adolescência apareceu a Coleção Vagalume. As tramas me pegavam de um jeito que eu não esperava. Foi quando a narrativa passou a ter mais força que a parte visual dos livros para mim. 


Depois, pelo clube de assinatura Círculo do Livro, conheci Sidney Sheldon, que me fez esquecer completamente das ilustrações durante a leitura. Naqueles livros de suspense, cujas personagens principais eram mulheres fortes e cheias de sensualidade, descobri que uma menina pode ser a heroína da sua própria história. Havia diversos trechos um tanto pesados para uma adolescente, mas, por isso mesmo, devorei com avidez. Tudo. Toda a obra dele.


Ainda hoje fico tentando ler até "esgotar” as obras dos autores com os quais me identifico. Não por capricho, mas por necessidade. Assim eu os conheço melhor, mergulho no universo de cada um e me pego imersa no meu também.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

O menino Sabino


Não me lembro de quando li "O menino no espelho" pela primeira vez. Na adolescência? Sei que minha paixão pela obra de Fernando Sabino começou depois que comecei a me aprofundar em Literatura, já adulta. Conhecer gêneros literários, autores, os clássicos... Daí me caiu nas mãos um livro de bolso "Os melhores contos de Fernando Sabino" e foi amor à primeira leitura. Desconfio que nunca ri tanto lendo, como no conto "Como nasce uma história". Amo textos assim, capazes de me mudar o humor, deixar meu riso solto.

No último feriado reli "O menino no espelho" na paz da serra e além de rir, eu me emocionei. Estava curtindo ver meu filho brincar livre e solto com outras crianças na natureza (sem videogame ou tv pra abduzi-lo)... Caiu tão redonda essa leitura! Parecia que era a primeira vez. Como pude apagar esse romance da memória? Não deve ter me marcado tanto antes... Quando tentava lembrar, confundia o Fernando (personagem principal) com o Eduardo Marciano, de "O encontro marcado". Nada grave, uma vez que os dois têm muito em comum e ambos são personagens autobiográficos. 

A história começa com um mistério, termina com seu desvendar e entre o prólogo e o epílogo, é como uma coletânea de contos que se passam com os mesmos personagens em sequência, pois todos os capítulos são independentes. Memórias do menino Fernando. Refleti tanto enquanto lia, olhando as colinas verdes à minha volta... Se Sabino fez metade das traquinagens relatadas naquelas páginas... mesmo que tenha imaginado boa parte delas e não passem de "lorotas" como o próprio autor confessa no final, ele foi, sem dúvida nenhuma, um menino feliz. 

Acredito que as leituras que fazemos não são por acaso. Elas acontecem no momento certo. As que nos afetam, claro. Então pensamos: "por que não li esse livro antes?" Porque não teria o mesmo efeito. Seria apenas mais um. Lido na hora certa, ele cumpre seu papel. Vários outros aguardam seu momento na estante. Espero ter mais surpresas tão agradáveis quanto a desse feriadão. Novamente Fernando Sabino temperou meus dias. Minha paixão cresceu, assim como a certeza de que a infância é a fase mais linda da vida.

domingo, 29 de julho de 2018

"Um divagar em alta velocidade" no blog "Livros para todas as idades"

Olha aí o vídeo que o blog "Livros para todas as idades" publicou! Nele eu falo um pouquinho sobre "Um divagar em alta velocidade", meu novo livro, que tive o prazer de lançar, pela Editora Quase Oito, na FLIP. Espero que gostem! Obrigada, Marthinha Gomes, Neide Graça e Mercedes Fernandes. Beijos!

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Lançamento de "Um divagar em alta velocidade" na FLIP!

Alguém me belisca, que eu acho que estou sonhando? É, pessoal, meu livro nasceu! "Um divagar em alta velocidade" está aí! Viva a Quase Oito!!
Convido a todos para o lançamento na FLIP, na Casa do Desejo, às 15h30 no dia 27/07 (sexta-feira), após o lançamento de "A menina e a árvore", da Leticia Sardenberg, que ilustrei com tanto carinho. ❤️
Que maneira linda de começar! Estou muito feliz! Patricia Capella e Tatiana Kely, obrigada por acreditarem no meu trabalho. Vocês são 1.000!! "Um divagar em alta velocidade" ficou do jeitinho que eu esperava e ainda conta com apresentações da amiga Verinha Bastos, no prefácio, e da minha mestra querida Ninfa Parreiras na orelha! Só tenho a agradecer.
Então, se você for à FLIP, passa lá na Casa do Desejo! Eu vou adorar comemorar contigo! 

sábado, 21 de outubro de 2017

Carta à memória


Caríssima memória,

Escrevo para registrar meu apreço por você. Acredito que já tenha ciência disso, mas não custa frisar. Desde cedo, cresce em mim o medo de, um dia, perdê-la. Deixar de ser quem sou. Pior que morrer é viver sem lembrar.

Encontrei, noutro dia, entre guardados inúteis de fundo de gaveta, aquela cassete Basf, que uma vez me trouxe lembranças de um tempo que não vivi.

Era um encontro de família. Meu pai ao piano. Sua voz se misturava às de minhas tias, tios e... à minha. Uma cena usual, não fosse a plena certeza que eu tinha de jamais ter cantado aquela canção na vida. Marchinha de carnaval, falava de boias-frias bebendo para esquecer, seus sonhos de bife a cavalo com batata frita e, de sobremesa, goiabada cascão. Com muito queijo. Como eu podia ter apagado tudo aquilo?

A música era O Rancho da Goiabada, do João Bosco e do Aldir Blanc, que logo se emendou em João e Maria, do Chico. Minha voz cantava sem mim. Seria possível? Foi quando, na gravação, ouvi um choro de bebê, seguido da voz de meu pai: – Espera um pouquinho, Luciana. – Vrrrvvrrdfgtgghhhhhvrrr. Rebobinei a fita. – Espera um pouquinho, Luciana. – Ouvi tudo de novo. E de novo. Chorei e ri muito, agarrando-me a você e agradecendo por permanecer comigo. A voz que pensei ser a minha era de minha mãe, com a minha idade atual. Um susto. Peça pregada por uma lembrança alheia.

Devia haver maneira de costurá-la nas ideias. Leonard, no filme Amnésia, de Christopher Nolan, tatuava o próprio corpo com pistas sobre si mesmo. Gosto da estratégia. A tatuagem gruda na gente e não sai mais. Fiz minha primeira tatuagem com quase 40 anos.

Funes, o memorioso, de Borges, à primeira vista me pareceu o retrato da perfeição. Até o mesmo conto desconstruir essa impressão, provando por A+B as limitações de ser uma enciclopédia ambulante.

Uma pessoa enlouquece por total esquecimento ou por não saber articular memórias demais. Fico com a segunda opção, caso possa escolher. Simpatizo com o ditado “o que abunda não atrapalha” e me desce um tanto quadrado o tal “antes só do que mal acompanhada”.

Aquela cassete Basf não toca mais. O toca-fita tornou-se artigo raro. Assim como ouvir meu pai ao piano. Nem tudo se resolve com tatuagem. Até quando guardarei comigo a gargalhada contagiante do meu irmão caçula? E o cheiro de aconchego da minha avó?

Estou me estendendo demais. Queria apenas dizer que te amo e que não sei viver sem você. Às vezes te sinto distante, volátil, fulgaz. Isso me paralisa. Não me deixe só.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Crônica de um resgate


“A escrita salva”, anotou a poeta no canto da página do livro. Falava Marguerite Duras sobre a solidão dos que escrevem e encontram, no próprio vício, a redenção. Do fundo do buraco, avistam a mão estendida. A mesma que espanca, afaga, cutuca e faz cócegas. Carma. Grata maldição, a escrita. Caminho sinuoso, de grandes obstáculos, sem atalhos e sem volta.
Desde criança escrevi. Amante das aulas de Português e Redação, escrevia para a escola e para ninguém. Fiz uma vez um diário na agenda – aquelas que ficavam difíceis de fechar no final do ano de tantas fotos, ingressos, papéis de bala e bombom anexados às páginas – mas nunca tive disciplina suficiente para manter uma regularidade. Escrevia em especial nos momentos de angústia. Encontrei a tal agenda entre meus guardados noutro dia: 1992, para mim, o ano das primeiras paqueras, dos primeiros namorados e dos piores professores (até então). A agenda, portanto, foi um necessário improviso.
Nos anos seguintes, corri atrás da minha formação e do meu enquadramento nos moldes da nossa sociedade. Pouco escrevi além dos textos para a escola e os concursos para escolas técnicas. Sim, também curtia cálculos. Formei-me em Eletrônica (mas não me peça para consertar sua televisão porque não me lembro de mais nada). Talvez, por essa afinidade, eu tenha escolhido o Design como carreira. Aos meus olhos, a mistura de arte com números parecia interessante. Ou então, essa é a forma como eu gosto de pensar, já que quando eu disse que queria fazer Belas Artes, minha mãe foi contra, alegando que eu passaria fome.
Acontece que, nas raras ocasiões em que escrevi nesse tempo, meus textos ganhavam boas notas. Um deles chegou a ser lido em voz alta para turma pelo professor. Quase me enfiei debaixo da mesa com a timidez que me esquentava o rosto. Ah! Essa fraqueza que me furta as palavras no tête-à-tête, mas me dá uma força imensa para escrever. Para guardar ou jogar no ventilador.
Durante a faculdade houve um episódio em que fui humilhada diante da turma por um professor que se incomodou com um trabalho que eu pretendia fazer sobre as artistas plásticas no Brasil do século XX. Só mulheres. Impiedoso, ele discursou por quase meia hora sobre a fragilidade do meu recorte e me fez chorar. No entanto, na aula seguinte, fui munida de um belo texto de defesa do meu tema. Recebi palmas e um pedido de desculpas.
Escrever, sobretudo para os tímidos, é essencial. É a via por onde conseguimos deixar o pensamento fluir, organizando as ideias. Dói, devasta, mas cura também. Voltei a escrever mais regularmente depois que me estabilizei financeiramente e pude prestar atenção em mim. Estava enquadrada: casada e empregada. Era chegada a hora de me resgatar. Quem era eu? Aquela ou outra esquecida lá em 1992? Não sabia mais. Na minha busca por mim mesma, encontrei o vazio.
“A escrita salva”, anotou a poeta no canto da página do livro. A poeta que iniciou o processo do meu resgate. Imersa na escrita, orientada por ela, notei que não suportaria tanto desvendar sem um acompanhamento psicológico. Tentei diversas terapias, mas sentia falta de ar na superfície. Foi então que apareceu minha segunda salvadora: Clarice Lispector. Foram suas palavras, num de seus livros de contos, que me fizeram enxergar que eu precisava de um mergulho. Bem fundo. Descobri a Psicanálise, baita aliada para um escritor. Paixão à primeira vista, mergulhei. Salve Clarice. Salve Ninfa Parreiras, a poeta a quem, por duas vezes, refiro-me neste texto, e que, por coincidência ou não, também é psicanalista.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Suada finesse



Padecia de sudorese severa. Uma disfunção que fazia Percevânia penar, desde seus primeiros anos na escola, com a zombaria dos colegas e os apelidos que colecionava. Seu sobrenome, Quevejo, ajudou na criação de um deles em especial. Aquele que carregou até se tornar adulta e lhe deu a inspiração de que precisava para sua grande reviravolta: Percevejo. Viveu anos de úmida agonia sem se dar conta de que nela dormia seu trunfo.

De tanto ser comparada a um inseto que conhecia apenas pelo que diziam os leigos, a moça iniciou um estudo aprofundado sobre um xará seu: o Nezara Viridula ou, para os íntimos, Maria-fedida. A cada descoberta, identificava-se um pouco mais. Lia teses extensas sobre o inseto com tamanho gozo que mais parecia estar num transe de autoconhecimento. Incorporou aos poucos alguns comportamentos do bicho e passou a criá-lo para entendê-lo melhor. Observou, alimentou, amou, dissecou as criaturas. Percebeu o poder da substância que expeliam. Aprendeu a manipulá-la. Apaixonou-se e fez da depuração daquele cheiro sua razão de viver.

Numa reflexão sobre odores e fedores, recorreu à analogia para concluir que, em vez de asco, o cheiro de percevejos poderia causar atração. Não há quem diga que cecê excita? Entre fragrância e futum, um fio tênue. Em seu divagar, Percevejo suava. Muito. Essência, perfume. Sentia a epifania à espreita.

Por sua afinidade com experimentos, formou-se em Química. Trabalhava no laboratório durante o horário de expediente e em casa, à noite, com seus exóticos bichinhos de estimação. Em pouco tempo, estava no topo de uma grife importante. Passou a frequentar ambientes de luxo e consumir produtos finos.

– Aceita um café, madame?

Naquela bebida estava a resposta. Quando soube que o grão do café que estava prestes a degustar, um dos mais caros do mundo, era colhido das fezes de elefantes, tudo clareou. Que delícia: amargor atenuado, aroma floral, sabor com notas de chocolate ao leite, nozes e frutas vermelhas. Eureka! Que mal haveria em borrifar umas gotas de essência de percevejo no cangote se já ingerimos algo que saiu do fiofó do elefante?

Do encontro com a bebida reveladora até o dia seguinte na empresa, Percevejo nada fez além de redigir o projeto da sua vida. Sua essência. Apresentou a todos que estavam dispostos a ouvir. Recebeu ofertas, aplausos.

Hoje a Perce V. é a grife líder mundial em perfumaria por suas fragrâncias inovadoras. Sua falecida fundadora não concedia entrevistas e muito se especulou sobre ela. Após a morte, em sua casa, completamente tomada de percevejos, foram encontrados arquivos valiosíssimos que mostram, em curiosos detalhes, o processo de depuração do perfume mais caro do planeta.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Caça às personagens


Voava baixo e em silêncio o vulto na noite de Santa Salém. Esgueirando-se pelas ruelas empoçadas, agarrada a um embrulho, Eulália dirigia-se determinada à casa dos Boaventura. Gente de posses, dada à caridade. Não se negariam a abraçar e assumir o que para ela, naquele momento, não passava de um estorvo. Teria então a chance de parar de viver no erro e redimir-se. Deitou, com cuidado, o pacote no capacho da família abastada, olhando-o nos olhos. Scriptum est, disse o bebê. Hein? Eulália quase arremessou a criança ao ouvir aquelas palavras que, pronunciadas por um recém-nascido, pareciam coisa do demo. Tinham mesmo sido ditas? Seus olhos pregaram-lhe uma peça? Os ouvidos? Resolveu desaparecer antes que o delírio voltasse a atormentá-la. Véu na cabeça, terço na mão, estrada no pé. Partiu sem titubear, farta de fantasias.

De dia era Maria, de noite, João. Num dia era polícia, no outro, ladrão. Como Amélia nunca descobriu sua identidade, concluiu que podia ser qualquer um. Ativista, pacifista, vigarista, artista. Ajudava na igreja, fazia bico no cabaré. Acreditava em cada papel com a mesma certeza. Clandestina de nascença, exercia todos os ofícios. Especialista em generalidades e invencionices. Esse jeito múltiplo-transitório de se encarar era o único que conhecia e incomodava muita gente. Costumava ser alvo de piadas e vaias dia após dia. Seus vizinhos só lhe concediam uma trégua no carnaval, quando pareciam se comportar como ela. Encarnavam personagens, fantasiavam-se, davam férias aos preconceitos. Nesses dias, porém, Amélia preferia a reclusão.

Depois da morte do último Boaventura legítimo, que se afogou nas dívidas, Santa Salém perdeu o que lhe restava do respeito por Amélia. Com abordagens cada vez mais hostis, os vizinhos tentaram de tudo para tirá-la de circulação. A moça passou a ser considerada altamente prejudicial aos bons costumes da cidade e se tornou questão de ordem pública. Policiais armados cercaram sua casa. Trouxeram uma representante da igreja para tentar convertê-la. Missão para Madre Eulália, da paróquia de Santo Paoco, que veio voando em seu hábito negro e invadiu a casa com violência.

Não se sabe o que houve lá dentro, mas em três dias um misterioso incêndio lambeu toda a construção. Quase fundidos num abraço, os corpos foram encontrados: a bruxa e a freira. Sentenciadas à mesma fogueira. Scriptum est.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Todo ouvidos!


Numa bela manhã de julho, levanto da cama guiada por mãozinhas convictas. Sentindo o ar frio do inverno, titubeio. – Vem, mamãe, vem! – O tom infalível atropela minha preguiça. Seguimos os dois para seu quarto. Lá ele se ocupa com brinquedos, independente de mim. Empurra, amassa, embaralha, encaixa, cria. Espírito absorvido. – Guilherme? – Inútil chamar. Tudo que consigo é um olhar abotoado por fração de segundo. Insinuo um movimento. – Não, mamãe, fica? – Ah, eu fico! Pego um livro na sua estante e começo uma leitura em voz alta.

Numa bela manhã de setembro, a velhinha levanta-se da cama, cafunga e... Nada. Continuo contando canários amarelos, gansos brancos, galinhas pintadas, gatos pretos, porcos barrigudos e vaca marrom. No meio da bicharada, ele para de brincar e me dá as costas. Sinto-me música de elevador. Pelo menos a colheita dos velhinhos é boa. Viro a página.

Numa bela manhã de março... Continuo? Sim. Agora eu quero saber o fim da história! Puxa daqui, estica dali, força de lá, mas Guilherme não se mexe. Vêm os velhinhos, a vaca marrom, os porcos barrigudos, os gatos pretos, as galinhas pintadas, os gansos brancos, os canários amarelos e vai embora meu fôlego. Ainda assim, não se mexe! A velhinha traz o rato e chego às últimas páginas.

POP! O nabo gigante sai do buraco. – Viva o ratinhooooo!!! – O grito de Guilherme me derruba da cadeira. Bichos, velhinhos, o livro e meu menino, todos em cima de mim. Caímos em deliciosa gargalhada. – “Quelo” mais! – Como não? Recomeço, releio. Repito diversas vezes, recompensada por ter abandonado tão cedo meu edredom para partilhar leitura, mesmo sem me dar conta disso.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Desafio microcontos: cem toques


Ao perceber que dava passos que não eram seus,
o fantoche parou para, enfim, decidir que rumo tomar. 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Efeito Éole


Sobre o vilarejo de Sotavento estacionou uma nuvem há vinte anos. Desde então, chove sem cessar por ali. No lugar da praça fez-se lagoa. Começou com a chegada de uma frente fria com sotaque francês. Esmeralda tinha olhos de mar e madeixas de calmaria que, no primeiro contato com Éole, encheram-se de ondas ferozes. A cabeça virou-se em ressaca pelos cálidos sopros do forasteiro. No entanto, quando ele partiu sem aviso e o marasmo de antes voltou, Esmeralda já tinha vício pela ventania. De quentura e saudade, ela chorou. Foi a última vez que se viram moça e praça. Dali em diante, só nuvem, lagoa e um calor dos infernos.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Pães de Açúcar


Bom dia! Olá, como vai?  Bom dia! Oi! Tudo bem? Tudo azul. Onde quer que eu olhe. Pela manhã, as ruas de Laranjeiras se enchem de crianças a caminho da escola. Umas a pé, outras de carrinho, algumas na cadeirinha da bicicleta. Alguém disse certa vez que começar o dia topando com uma criança é bom sinal. Que dirá com várias?! Mas o que tem me deixado enternecida é perceber quem as acompanha. As vozes que me cumprimentam são graves e o tamanho dos sorrisos denuncia o orgulho de ser pai.

Foi noutro dia que me dei conta disso. Encontro muito mais pais do que mães quando deixo meu filho na escola. Constatação sem o menor tom de crítica. Gosto de ver o jeito com que eles lidam com a situação. Têm uma delicadeza arbitrária, diferente daquela que se espera das mães. No meu trajeto, o trecho da Paissandu é o mais fértil.

Rua de palmeiras imperiais que liga Laranjeiras à Praia do Flamengo, a tradicional Paissandu tem um nome de origem controversa. Das versões que li, nenhuma me parece tão interessante quanto a que ouvi da boca de um menino. Vinha no colo do pai, que andava a passos largos, quase correndo, com a bolsa tiracolo entupida e entreaberta. Uma toalha ameaçava cair. Sem outro meio de ajudar, o pequeno anunciava: pai passandu, pai passandu, paissandu, paissanduuuu!!! Definitivamente, Paissandu é rua de pais passando. Dei licença.

A proliferação de “pães” tem atingido níveis surpreendentes no Rio de Janeiro. Doce perspectiva. Que os índices permaneçam em alta! Por isso, quando percebo o tamanho da paixão do meu filho pelo pai, engulo a seco o ciúme que tenta se achegar. É preciso dar licença aos Pães de Açúcar.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Mapas Literários: o Rio em histórias



Nem Ari, nem Raul. Seu nome era Aru. Um erro de grafia que lhe rendia achincalhe diário desde os tempos da escola. Seria exótico se não existisse no dicionário. Podia significar “leão” ou “ilustre combatente”. Mas Aru era “uma espécie de sapo”. 

Assim começa meu conto Furnarius Rufus. Uma homenagem a Braguinha e a Copacabana, cheia de humor e referências, que faz parte do livro Mapas Literários: o Rio em histórias, organizado por Ninfa Parreiras e publicado pela Editora Rovelle. Viva!!!

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Melhor tê-los


Na última segunda, voltando com a Maroca de um passeio matinal delicioso, em frente à clínica veterinária, vi um menino chorando. Menino de seus vinte e poucos anos. Talvez trinta. Não sei ao certo. O rosto estava um tanto escondido pelas mãos e os olhos vermelhos encaravam o céu. Seria um cachorro que o havia deixado? Um gato?

- Que dó... É por isso que eu não tenho bicho - disse uma moça que ia mais adiante, torcendo o pescoço e encompridando o olhar na direção do menino.

De coração apertado, observei a Maroca. Seguia rebolativa, cafungando muros e postes por onde passava. Não pude deixar de sorrir e discordar da moça. Parafraseando Vinicius: Bichos? Melhor não tê-los. Mas se não os temos, como sabê-los? Se doía tanto naquele menino a partida do seu animalzinho, era porque tinha valido muito a pena.  

terça-feira, 27 de maio de 2014

Eu e minha boca grande!


Sim, sou carioca. Não, não gosto de futebol. Por que isso parece tão contraditório para as pessoas? Ainda mais em épocas assim. Sim, a Copa está aí. Quero dizer, aqui. E eu? Não estou nem aí.

- De onde você é? Ah! Rio de Janeiro! Uhuuu! Animada pra Copa? Como não? - Isso é tão estranho que, às vezes, até eu me contradigo! Noutro dia minha professora de italiano, enquanto olhava meus Livretos Coloridos, disse: - É. Você diz que não gosta de futebol. Mas o Fubaca gosta! - Vai explicar um troço desse... Inspiração é coisa que a gente não controla.

No ano passado, numa caminhada com amigos, o papo era futebol, para minha alegria. Daí, um deles me provocou: - Um dia alguém ainda vai te fazer gostar de futebol! - Na defensiva, retruquei rápida e levei uma rasteira: - Pois sim! Está pra nascer essa pessoa!! - Mal terminei a frase e olhei para minha barriga que, redonda como uma bola, guardava um menino.


Foto: Arquivo pessoal

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Georgette


Aujourd’hui, c’est un grand jour pour Georgette. Elle est tellement contente qu’elle a envie de faire mille galipettes, se promener en bicyclette et jouer de la clarinette. Tout ce bonheur a certainement une raison authentique. Cette raison s’appelle Pierric, un garçon à l’air angélique, mais qui en fait est une personne antipathique et diabolique qui fait le diplomatique pour promouvoir sa vie académique. Tout le monde le sait dans l’école sauf Georgette, qui s’obstine à embrasser sa photo comme si c’était une amulette.

Maintenant elle se prépare pour aller à une buvette. Pierric l’attend pour lui dire une chose secrète. Mais, que peut être cette chose? Georgette n’aime pas les devinettes. Elle préfère rester avec ses idées abstraites. Dans son armoire, elle prend sa meilleure culotte et devant le miroir la petite rigolote se raconte des anecdotes. Sur la porte de l’armoire est accroché un pense-bête. Le rendez-vous est à sept heures. Sept! Mais quel sera le vêtement parfait? Une robe ou la salopette? La salopette, c’est chouette.

En arrivant au bar, avec une ponctualité britannique, Georgette voit l’amour de sa vie et en grelotte. Quand lui la voit, il a l’oeil qui clignote. Elle marche jusq’à lui, s’assoit et commande une blanquette avec des cacahouettes. Ils bavardent, elle s’amuse, il fait le loustic. Un concert acoustique rend la soirée encore plus romantique.

Mais, tout à coup, ce qui était romantique devient dramatique. Pierric met Georgette dans une situation chaotique. Il lui demande d’écrire une lettre à une femme étrangère qu’il a connu durant une promenade nautique. Cela serait comique si ce n’était tragique. Georgette se sent bête. Stupéfaite, elle ne peut pas y croire et fait une crise asthmatique. Mais, quand même, elle dit oui, la pauvre. Qu’est-ce qu’elle peut faire d’autre? Il aime les belles et riches chochottes… Elle préfèrerait être analphabète pourvu qu’elle soit une vedette. À quoi sert d’être polyglotte quand on est boulotte?


Foto: http://br.freepik.com/fotos-gratis/rosa-seco--triste_529260.htm

terça-feira, 23 de abril de 2013

Expectativa


Entre manchas cinzentas no fundo escuro em forma de leque, surge um pontinho preto.
– Achei. Vamos ver mais de perto?
O ponto se amplia e toma o feitio de um grão de feijão. A profissional faz medições.
– Mas o que significa?
– Ainda não dá para ver, mas é aqui onde a mágica toda acontece.
Meus olhos fixam na imagem e não enxergam mais o feijão.  Apenas uma boca que sorri marota para mim, como quem diz: – Me aguarde!

terça-feira, 16 de abril de 2013

Os bons ventos do outono


- Tenha paciência. Na hora certa, vai acontecer.
- Mas quando?
- Bem... Olha aquela árvore lá. Sua hora vai chegar quando uma daquelas folhas cair.
- Mas qual??
- Isso eu não sei te dizer.

As folhas caíram aos poucos, sem trazer novidade. Mas uma delas ficou, apenas uma. Manteve-se firme, presa ao galho até... ontem! Bendito seja o outono!!!


(Estudo em stencil)

domingo, 7 de abril de 2013

Águas de março


Luz apagada. - Deitados no chão, fechem os olhos e relaxem. Deixem vir à mente as mais belas paisagens... Era assim que começavam as minhas viagens na seção de relaxamento das aulas de teatro do segundo grau. Foram poucas e, claro, participei porque eram obrigatórias. Mas dessa parte das aulas eu gostava bastante, pois podia praticar, com certa liberdade, meu passatempo favorito: imaginar.

Digo "certa liberdade" porque a professora costumava quebrar a fluidez de nossos pensamentos com frases do tipo: - Agora você está diante de um lago. E, mesmo que você não tivesse a menor intenção de meter um lago na sua paisagem, ele surgia ali, na hora, tão intrometido quanto a voz que o havia anunciado.

Dei o exemplo do lago porque é o que vem primeiro à cabeça quando me lembro dessas aulas. Não tenho nada contra os lagos. Muito pelo contrário. Minhas paisagens eram cheias deles. Variavam entre mares, rios, lagos e lagoas, que às vezes se misturavam, sempre debaixo de um sol ameno.

No final da terapia da imaginação, a professora perguntava como tínhamos idealizado as imagens introduzidas por ela. - Como era o seu lago? E cada um revelava um pouco de sua personalidade, sem perceber, através das respostas.

Como era o meu lago? Cristalino e profundo. Transparente e complexo. Tipicamente pisciano.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Até chegar ao paraíso



Sobe, desce, direita, esquerda, pra frente, pra trás... Passada meia hora nesse balanço, a cor de Clarice variava entre o branco e o verde.

Havia cerca de vinte pessoas no barco. Davi, seu marido, dormia tranquilo ao seu lado, assim como as crianças encostadas na mulher à sua frente. Os demais faziam caretas e, vez ou outra, seguravam, com muito esforço, o café-da-manhã, que teimava em querer fugir boca afora. Aqueles que não conseguiam, encorajavam outros a se largarem também. Era saquinho daqui, papel-toalha dali...

Clarice quase se rendeu, sobretudo depois de perguntar ao marinheiro qual era duração da viagem.

- Duas horas, madame. Mas uma já foi! Só falta uma!

Deus do céu, por favor, permita que eu durma! – Clarice desejou com toda força. Então, o balanço do barco, além de embrulhar o estômago, começou a ninar a moça.

- Claclá, chegamos. – Davi interrompeu o sono de Clarice com um cafuné.

Clarice abriu os olhos, enxergou terra firme, respirou fundo e... ahhh, sorriu. Contemplou por um momento o lugar paradisíaco, agradecendo a si mesma por ter comprado passagens aéreas para a volta e por não ter tomado café-da-manhã.