Nas profundezas do meu mar, sou uma criatura horrenda. Por mais que me considerem carne saborosa, não consigo ver além do rótulo que um dia ganhei: a lagosta dos homens pobres. A verdade é que sou muito mais sapo do que peixe. Tóxica e dúbia. Empenho-me desde a infância na minha própria extinção.
Por uma questão de probabilidade, nasci fêmea. Enquanto meus irmãos, pequeninos, nadavam ávidos e soltos por aí, puseram-me numa bolha, apesar do meu tamanho avantajado.Nadar numa bolha é estrebuchar no espaço. Não se chega a canto algum por mais força que se faça. Sendo assim, meu nado carecia de suporte e direção. Nada, nada e nada. Nada de riscos ou sustos.
Aprendi com rapidez a me transportar para outros lugares, situações mais interessantes que a minha. Imaginava cenas inteiras, inventava histórias. Os livros eram bons aliados nessas viagens. A maior parte do meu corpo passou a ser a cabeça.
Essas fugas também usei para me livrar do mal. Visitava uma tia com frequência. Sapa gorda de riso estridente. Meus primos saltitavam ao me ver e a brincadeira esticava até altas horas. Aí, quem vinha brincar comigo era o tio sapo com sua língua pegajosa. Hora de fugir.
Só denuncio as travessuras desse tio na velhice, num ataque súbito de claustrofobia, quando estouro minha bolha e faço chover. Uma chuva de oh!, mas como?, que absurdo!, mas por que só agora?, para que contar agora?
Os sapos são extremamente indigestos e há uma quantidade máxima passível de ser engolida. Quando o estômago chega à superlotação, eles pulam garganta afora, machucando, sem dó, quem tiver que machucar. Fica um amargor na boca.
Por que só agora? Porque sou feia e má. O sabor de lagosta não passa de propaganda enganosa. Fraude. Peixe-sapo com veneno e dentes afiados. Por isso vivo nas profundezas. Sozinha, no escuro.
Sem comentários:
Enviar um comentário