quinta-feira, 8 de março de 2012

Tamboril fêmea

Nas profundezas do meu mar, sou uma criatura horrenda. Por mais que me considerem carne saborosa, não consigo ver além do rótulo que um dia ganhei: a lagosta dos homens pobres. A verdade é que sou muito mais sapo do que peixe. Tóxica e dúbia. Empenho-me desde a infância na minha própria extinção.

Por uma questão de probabilidade, nasci fêmea. Enquanto meus irmãos, pequeninos, nadavam ávidos e soltos por aí, puseram-me numa bolha, apesar do meu tamanho avantajado.

Nadar numa bolha é estrebuchar no espaço. Não se chega a canto algum por mais força que se faça. Sendo assim, meu nado carecia de suporte e direção. Nada, nada e nada. Nada de riscos ou sustos.

Aprendi com rapidez a me transportar para outros lugares, situações mais interessantes que a minha. Imaginava cenas inteiras, inventava histórias. Os livros eram bons aliados nessas viagens. A maior parte do meu corpo passou a ser a cabeça.

Essas fugas também usei para me livrar do mal. Visitava uma tia com frequência. Sapa gorda de riso estridente. Meus primos saltitavam ao me ver e a brincadeira esticava até altas horas. Aí, quem vinha brincar comigo era o tio sapo com sua língua pegajosa. Hora de fugir.

Só denuncio as travessuras desse tio na velhice, num ataque súbito de claustrofobia, quando estouro minha bolha e faço chover. Uma chuva de oh!, mas como?, que absurdo!, mas por que só agora?, para que contar agora?

Os sapos são extremamente indigestos e há uma quantidade máxima passível de ser engolida. Quando o estômago chega à superlotação, eles pulam garganta afora, machucando, sem dó, quem tiver que machucar. Fica um amargor na boca.

Por que só agora? Porque sou feia e má. O sabor de lagosta não passa de propaganda enganosa. Fraude. Peixe-sapo com veneno e dentes afiados. Por isso vivo nas profundezas. Sozinha, no escuro.

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