sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A ponte

 



"Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz
al otro lado del río

El día le irá pudiendo
poco a poco al frío
Creo que he visto una luz
al otro lado del río

Sobre todo creo que
no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima
y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama
casi un suspiro
Rema, rema, rema-a 
Rema, rema, rema-a"

Trecho da música Al outro lado del rio, de Jorge Drexler



Na terça-feira passada, fui a uma reunião na escola do meu filho para saber como será o último trimestre do ano para a turma dele. O que será trabalhado e o que se espera. A professora começou sua fala de uma maneira que nem eu nem os demais pais presentes esperávamos. Passou para nós a mesma atividade que havia proposto às crianças naquele dia. Fez a leitura do livro “A ponte” (Callis), de Eliandro Rocha, ilustrado por Paulo Thumé, e nos pediu para escrever, num pedacinho de papel, o que considerávamos importante para “construir pontes”.

O livro apresentado fala do coelho Nestor, que vivia tranquilamente sozinho no seu canto da floresta até um estranho se mudar para pertinho dele, do outro lado do rio. Nestor não gostava nada da situação. Perdeu sua privacidade e o silêncio que amava para ler seus livros. No entanto, no fim, ele constrói uma ponte para conhecer melhor o vizinho e percebe o quanto estava errado sobre ele. Linda mensagem. Gostei tanto da leitura como da atividade proposta pela professora e escrevi no papelzinho que, na minha opinião, para “construir pontes”, é preciso humildade e paciência.

Hoje, após a leitura do ensaio “Direito à Literatura”, de Antonio Candido, percebi uma relação interessante entre ele e a mensagem do livro lido pela professora do Gui na reunião de pais. Falar de direitos humanos no Brasil é tarefa difícil por se tratar de um assunto extremamente controverso. “(...) Porque pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. (...) Na verdade, a tendência mais funda é achar que os nossos direitos são mais urgentes que os do próximo.” Seria a literatura indispensável?

Antonio Candido visualizou a relação da literatura com os direitos humanos através de dois ângulos: “primeiro verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos.”

Então, sim, a literatura é indispensável, um bem humanizador. No entanto, “em nossa sociedade há fruição segundo as classes na medida em que um homem do povo está praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de Machado de Assis ou Mario de Andrade. Para ele, ficam a literatura de massa, o folclore, a sabedoria espontânea, a canção popular, o provérbio. Estas modalidades são importantes e nobres, mas é grave considerá-las como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e à ignorância, é impedida de chegar às obras eruditas. (...) a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade, não a incapacidade. (...) é revoltante o preconceito segundo o qual as minorias que podem participar das formas requintadas de cultura são sempre capazes de apreciá-las, o que não é verdade. As classes dominantes são frequentemente desprovidas de percepção e interesse real pela arte e a literatura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as fruem por mero esnobismo, porque este ou aquele autor está na moda (...)”.

Deixamos de construir muitas pontes por falta de humildade, por achar que conhecemos o outro e suas necessidades. Antonio Candido encerra seu belo ensaio dizendo que “a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” Concordo com ele. Uma sociedade igualitária só será possível quando as pessoas começarem a se enxergar sem as lentes do preconceito. Rememos. Quem sabe um dia chegamos ao outro lado do rio?

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Bruxas e chocolate

“Ao longe, o relógio de uma igreja começou a bater dez horas.
Devagar, rangendo as dobradiças enferrujadas, os grandes portões de ferro da fábrica começaram a se abrir.
A multidão silenciou de repente. As crianças pararam de correr de um lado para o outro. Todos os olhos se fixaram nos portões.
- La está ele! – alguém gritou. – É ele!
E era ele mesmo”

Então perguntei ao Gui:
- Ele quem, filho?
- Willy Wonka!!

Com o passar dos anos, vou tentando fazer leituras mais longas com meu pequeno. Aos oito anos, ele acompanha bem histórias maiores, lidas aos poucos. Dois ou três capítulos por noite.

Gosto muito desses dois livros do Roald Dahl, ilustrados pelo Quentin Blake: “A fantástica fábrica de chocolate” e “As bruxas”. Meus exemplares são edições antigas da Martins Fontes.

Tentei começar pelo segundo, mas não deu muito certo. Apesar de ser engraçado e intrigante, como o texto demora a engrenar, o Gui perdia o foco, dormia com facilidade (olha a dica!) e não conseguimos chegar juntos à parte mais dinâmica da história. Achei que, pelo fato de ser sobre bruxas e “saber reconhecê-las por aí”, seria um sucesso com o Gui, mas não rolou.

Acontece que o outro livro, “A fantástica fábrica de chocolate”, está sendo uma delícia de ler com ele. E não é porque a história engrena mais rápido. Demora também. O trunfo, nesse caso, é o filme. O Gui já deve ter visto umas cinco vezes e adora. Então ele acompanha, percebe as diferenças entre o livro e o filme, fica curioso, pede para ler mais do que o combinado para aquela noite...

Aí é que está: você sabia que existe um filme baseado no livro “As bruxas”? Eu soube recentemente. É de 2020. Chama-se “As bruxas de Roald Dahl”. Assisti ao trailer e aposto que o Gui vai gostar. Depois de ver esse filme, garanto que a leitura do livro será bem diferente. Terei que arranjar outro para ter “efeito sonífero”.
😅