domingo, 18 de dezembro de 2022

A moça tecelã


Com a proximidade do Natal, preciso deixar essa dica. Não se trata de novidade, mas de uma obra essencial. "A moça tecelã" (Global), de Marina Colasanti, com bordados deslumbrantes das irmãs Dumont sobre desenhos de Demóstenes Vargas, é um livro que dou de presente com frequência. Segue uma breve análise do conto para justificar meu encantamento. 

Os dois primeiros parágrafos trazem a rotina tranquila e autossuficiente da moça, que tece não só seus dias e noites como tudo o que precisa para viver bem. É o estado inicial da história, de estabilidade e equilíbrio. “Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava.” 

No terceiro parágrafo também ela mesma produz a força transformadora da história: a solidão e a necessidade da companhia de um marido. Daí o equilíbrio do estado inicial termina. “Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte.” 

Nos parágrafos seguintes, vem a dinâmica da ação. A moça tece o marido que desejou, que entra sem pedir licença em sua vida e a faz feliz por algum tempo. Ela pensa em ter filhos, mas, assim que ele percebe o poder do tear, seu amor pela tecelã se transforma em ambição. Exige luxos mil e passa de companheiro a carrasco em poucas linhas. “A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!” 

No penúltimo parágrafo, ela mesma, de novo, produz a força equilibrante da história: a tristeza e a vontade de estar sozinha novamente. “Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer.” O último parágrafo traz o estado final da história, a moça desfaz tudo o que teceu para ter companhia, inclusive o marido, que quando se dá conta, desaparece da cena, restaurando o equilíbrio perdido do início. “Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.” 

Marina Colasanti, nesse conto, faz um discurso extremamente feminista – sem qualquer indício de panfletagem – através de uma narrativa linda, plena de metáforas. Nela, a força de vontade da mulher está representada pelo tear. O marido, muitas vezes uma imposição da sociedade para as mulheres, outras vezes uma necessidade real e sem volta, nessa história mostra-se coadjuvante facilmente descartável quando incomoda a paz da companheira.

Assim, analisando criticamente a narrativa, pelo discurso embutido para a livre interpretação do leitor, fica claríssima a intenção de mostrar que uma mulher pode ser a dona de sua própria história. Em “A moça tecelã” a protagonista produz não só seu sustento, suas vontades, seus bens, seus males e sua vida inteira, como também os cenários onde ela quer estar. Ela dá o tom, planeja, executa. Ela escreve o roteiro.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Memórias

Minha história de leitura, pelo que me lembro, começa com os livros e gibis por assinatura. Graças a meus pais, virei fã das coleções e, sobretudo, das turmas. A do Marcelo, Marmelo, Martelo (Ruth Rocha),...

...a do Menino Maluquinho (Ziraldo), ...

...a da Laurinha (Jane Carruth)...

e a dos personagens de Walt Disney, todas do Círculo do Livro, ... 

...a da Mônica (Mauricio de Sousa), ...

a da Luluzinha (Marjorie Henderson Buell), ... 

 ...a do Lambe-lambe (Daniel Azulay)...

Não é à toa que faço parte de diversas turmas – algumas bem antigas – e adoro cada uma delas. A da infância/adolescência, a do CEFET, a da faculdade, as do trabalho, a da literatura. Meu irmão costumava dizer que eu gosto mais dos amigos do que da família. Ciúme de irmão, claro. Mas é verdade que, apesar de muito tímida, quando monto uma patota eu me agarro nela e não largo mais!

Na infância eu lia, mas também ouvia muitas histórias. Tínhamos alguns discos coloridos de vinil, da “Coleção Disquinho”, com diversas narrativas musicadas, na maior parte compostas e adaptadas pelo João de Barro, o Braguinha, que quase furaram de tanto tocar na vitrola. Dessas, as que mais me lembro são “A festa no céu” e a “História da Baratinha”. Eu ficava arrasada com o triste fim dos personagens, mas não parava de repetir. 


Tinha uma que eu só ouvia através do meu pai, que contava tocando piano: “Zé Carrancudo”. Ele fazia as entonações, tocava as músicas na hora certinha, criava o clima todo. Nunca cansei de ouvir. Até hoje peço para ele contar/tocar, com a desculpa de que é para o Gui ouvir. Mas é a filhota aqui quem mais vibra. Essa narrativa, ao contrário das duas citadas da “Coleção Disquinho”, tem final feliz, apesar de ser tensa até o desfecho. Tentei encontrá-la em áudio por muito tempo, mas só achei em 2020, no Youtube. Ao ouvi-la no original, pela primeira vez, aos 41 anos, eu me emocionei. Meu pai contando é muito melhor.

As histórias lidas e ouvidas na infância me fizeram ser amante da música e sonhar em ser ilustradora. Toco piano, mas a timidez não me permite fazer o que meu pai faz. Para contadora de histórias, infelizmente não sirvo. Meu objetivo, quando menina, era um dia trabalhar com o Mauricio de Sousa ou nos Estúdios Disney. Cheguei perto! Escolhi estudar Design na ESDI e meu primeiro estágio profissional foi no estúdio de cinema de animação Animagem, com o grande Rui de Oliveira! Uma experiência incrível que guardo no coração. 




Hoje escrevo, ilustro e diagramo. Produzo meus livros do início ao fim. Não tem como dizer que não fui influenciada pelos livros da infância. Eu me identificava tanto com as personagens quanto com aqueles que as criavam. Queria saber quem eram, sua biografia... Colecionava narrativas.

Na adolescência apareceu a Coleção Vagalume. As tramas me pegavam de um jeito que eu não esperava. Foi quando a narrativa passou a ter mais força que a parte visual dos livros para mim. 


Depois, pelo clube de assinatura Círculo do Livro, conheci Sidney Sheldon, que me fez esquecer completamente das ilustrações durante a leitura. Naqueles livros de suspense, cujas personagens principais eram mulheres fortes e cheias de sensualidade, descobri que uma menina pode ser a heroína da sua própria história. Havia diversos trechos um tanto pesados para uma adolescente, mas, por isso mesmo, devorei com avidez. Tudo. Toda a obra dele.


Ainda hoje fico tentando ler até "esgotar” as obras dos autores com os quais me identifico. Não por capricho, mas por necessidade. Assim eu os conheço melhor, mergulho no universo de cada um e me pego imersa no meu também.