Com a proximidade do Natal, preciso deixar essa dica. Não se trata de novidade, mas de uma obra essencial. "A moça tecelã" (Global), de Marina Colasanti, com bordados deslumbrantes das irmãs Dumont sobre desenhos de Demóstenes Vargas, é um livro que dou de presente com frequência. Segue uma breve análise do conto para justificar meu encantamento.
Os dois primeiros parágrafos trazem a rotina tranquila e autossuficiente da moça, que tece não só seus dias e noites como tudo o que precisa para viver bem. É o estado inicial da história, de estabilidade e equilíbrio. “Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava.”
No terceiro parágrafo também ela mesma produz a força transformadora da história: a solidão e a necessidade da companhia de um marido. Daí o equilíbrio do estado inicial termina. “Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte.”
Nos parágrafos seguintes, vem a dinâmica da ação. A moça tece o marido que desejou, que entra sem pedir licença em sua vida e a faz feliz por algum tempo. Ela pensa em ter filhos, mas, assim que ele percebe o poder do tear, seu amor pela tecelã se transforma em ambição. Exige luxos mil e passa de companheiro a carrasco em poucas linhas. “A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!”
No penúltimo parágrafo, ela mesma, de novo, produz a força equilibrante da história: a tristeza e a vontade de estar sozinha novamente. “Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer.” O último parágrafo traz o estado final da história, a moça desfaz tudo o que teceu para ter companhia, inclusive o marido, que quando se dá conta, desaparece da cena, restaurando o equilíbrio perdido do início. “Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.”
Marina Colasanti, nesse conto, faz um discurso extremamente feminista – sem qualquer indício de panfletagem – através de uma narrativa linda, plena de metáforas. Nela, a força de vontade da mulher está representada pelo tear. O marido, muitas vezes uma imposição da sociedade para as mulheres, outras vezes uma necessidade real e sem volta, nessa história mostra-se coadjuvante facilmente descartável quando incomoda a paz da companheira.
Assim, analisando criticamente a narrativa, pelo discurso embutido para a livre interpretação do leitor, fica claríssima a intenção de mostrar que uma mulher pode ser a dona de sua própria história. Em “A moça tecelã” a protagonista produz não só seu sustento, suas vontades, seus bens, seus males e sua vida inteira, como também os cenários onde ela quer estar. Ela dá o tom, planeja, executa. Ela escreve o roteiro.